Por Luiz Domingues
E se pudéssemos adquirir uma nova identidade no decorrer da vida, com fisionomia, documentos, atividade profissional e relacionamentos sociais completamente diferentes dos nossos?
Pois, foi nessa fantasia que o diretor John Frankenheimer baseou-se para criar O Segundo Rosto (Seconds), seu longa-metragem lançado em 1966.
Tudo muda quando ele é abordado por um amigo que julgava falecido há tempos e que, não obstante, tal fato inusitado por si só, lhe propõe uma mudança radical de vida.
Arthur é levado, então, a uma instalação secreta, laconicamente denominada como “a empresa”.
Em meio a diversas pessoas com a mesma expectativa, Arthur é confinado com o intuito de se em preparar para uma mudança radical de vida.
Através de uma entrevista realizada por um misterioso homem chamado “Sr. Ruby”, Arthur aceita as regras dessa mudança radical de vida ao assumir o compromisso de se esquecer sem reservas de sua família e identidade antiga.
Um incêndio é forjado para que um cadáver de outra pessoa dada como indigente seja colocado no local, e, assim, tal farsa sirva para que Arthur Hamilton fosse declarado morto, oficialmente, ao se emitir um atestado de óbito e sua família aceitar a ideia.
Enquanto isso, ele submete-se a uma radical cirurgia, em que é completamente rejuvenescido e, com nova fisionomia, surge a sua nova personalidade, doravante como: Tony Wilson (personagem interpretado pelo ator, Rock Hudson). Agora ele vive como um artista plástico que mora em Malibu, Califórnia. Leva uma vida excitante como artista celebrado e namora Salome Jens (Nora Marcus), uma mulher jovem e muito bonita.
Entretanto, lentamente, o remorso por abandonar a sua vida verdadeira começa a ecoar dentro de si.
No entanto, por não suportar viver mais em meio à tal mentira, vai visitar a sua ex-esposa, ao alegar ser um amigo do falecido marido (ele mesmo), e, após quebrar essa norma de sigilo, é recolhido à força pelos seguranças às instalações da misteriosa organização secreta.
Ele reencontra o amigo que o levara pela primeira vez a conhecer essa organização e ambos pleiteiam uma terceira identidade. O final não é feliz, pois o destino de ambos, insubordinados, foi morrer para que seus cadáveres fossem usados como causa mortis de outros clientes que iriam “renascer”. E, certamente, a caracterizar uma irônica metáfora sobre a sociedade que lhe impõe regras e não tolera insubordinação a punir severamente quem não a obedece.
O filme é sombrio, a evocar a aura de um pesadelo, certamente. Mediante esplêndida fotografia preto e branco, obra de James Wong Howe, reconhecido pelos críticos como uma película que usa o gênero “Sci-Fi” a se misturar ao “thriller” policial. Elementos dessas duas escolas, mesclam-se à psicodelia em voga na época, principalmente em cenas que evocam a lisergia e o hedonismo, além de uma certa dose de terror, via influência da produtora britânica Hammer e dos filmes do grande diretor norte-americano, Roger Corman, certamente.
Em suma, se trata de um filme rico em metáforas e se coloca muito além dos clichês habituais dos gêneros Sci-Fi, Thriller psicológico e os clássicos filmes a abordar a espionagem e organizações secretas, mediante o uso e abuso da teoria da conspiração.
Do ponto de vista cinematográfico, foi mais um filme com baixo orçamento, pelo qual John Frankenheimer teve que lidar em sua carreira e, de novo, foi muito criativo.
Por conta dessa sua característica, também, é que o admiro como diretor, pois, ao preparar uma boa limonada com um bagaço de limão já anteriormente espremido, ele demonstrou mais uma vez o quanto foi criativo, portanto, sou um fã da sua filmografia, incluso este “Seconds”, que eu considero um filme bastante instigante.
Repensar sobre a vida que temos, as pessoas que nos cercam, as escolhas que fizemos e todas as consequências advindas desse enorme emaranhado de relações sociais é um convite que nos faz essa história, motivada através do mote do filme. Sonhar com uma transformação radical, o dito “começar de novo”, uma nova oportunidade para fazer tudo diferente, “repaginar”, enfim, chame como quiser a sua imersão, porém, o fato inexorável é que toda mudança tem que ser promovida de dentro para fora, portanto, não espere um agente da “empresa” te abordar com a proposta de uma mudança, mas mude, efetivamente, sem necessariamente deixar de ser o que é, se me permite este conselho.
Creio que só por essa reflexão, o filme já merece ser visto, embora ele tenha seus atrativos cinematográficos, certamente, e convenhamos, nas mãos de John Frankenheimer, ele ganhou virtude sob esse ponto de vista, igualmente.
Luiz Domingues é músico e escritor.