Paulo Sá

Blues: revolução musical e estilo

A influência e, digamos, a revolução musical que o blues proporcionou na música popular é tão notória que, por si só, já merecia um estudo mais aprofundado, porém, pela finalidade do nosso post, torna-se necessário um condensamento das informações.

As inúmeras variantes de cada estilo, as características musicais de cada década e a grande quantidade de  artistas importantes, nos levou a esquematizar os estilos do blues em três ramificações: o Delta/Country Blues, Classic Blues e o Urban Blues.

O Delta/Country Blues

Apesar das dúvidas quanto à data e épocas exatas do seu surgimento, estudiosos apontam que o foco principal ou até mesmo o berço do blues foi a região do delta do Mississippi, que abrange os Estados do Mississippi, Arkansas, sul do Tennessee, Alabama e uma parte da Louisiana.

Ali o blues se concretizou enquanto manifestação musical. O banjo e, principalmente, o violão e a gaita foram os instrumentos mais utilizados devido à facilidade em se carregar. O artista se apresentava ao violão — às vezes em companhia também da gaita de boca — fazendo uso do bottleneck, um gargalo de garrafa (também eram utilizados pequenos cilindros de metal), que o músico fazia deslizá-lo sobre as cordas, produzindo, assim, inúmeras blue notes.

Mapa do Delta do Mississipi (EUA)
Mapa do Delta do Mississippi (EUA)

A “música de blues” executada nessa região recebeu o nome de delta blues ou country blues. Tinha como ca­racterísticas: melodia simples e ritmo sincopado; a presença constante das blue notes; riffs repetitivos; essencialmente acústico, executado ao violão ou ao banjo; e uma aparente ausência de lógica na progressão dos versos, apresentando, na verdade, metáforas de duplo sentido. Pesquisas sobre esse estilo indicam que surgiu com algum tipo de registro por volta do final do século XIX, entre os menestreis.

Robert Johnson. Foto: Ray MacLean/Flickr

O grande nome dessa corrente foi Robert Johnson, muitas vezes confundido com as próprias origens do blues. Apesar de ter gravado pouquíssimo, apenas 29 canções registradas no Lp King of Delta Blues Singers, suas composi­ções são verdadeiros clássicos do blues: “Rambling on my mind”, “Crossroads“, “Walking blues”, entre tantas.

Entre outros nomes dignos de destaques, estão: Charlie Patton, que exerceu grande influência tanto em jovens músicos da sua época, tais como, Son House e Tommy MacClemann, quanto em nomes ilustres do pós-guerra, como Howlin’ Wolf e Eddie Taylor; e Big Joe Williams, um grande músico, que introduziu o violão de nove cordas, o que lhe proporcionava dobrar os baixos.

Há no âmbito dessa forma de blues algumas características que se diferenciam conforme o ponto geográfico em que se encontram. Citaremos a seguir algumas dessas variantes:

a) O blues da Costa Leste — Aparece nos Estados das Carolinas, Virgínias, Kentucky, Tennessee do Leste e Geórgia. O blues dessa região é mais suave do que o dramático e pungente Delta Blues. Seus artistas principais são: Blind Blake, Reverendo Gary Davis e Sonny Terry;

b) O Texas Blues — Uma característica importante nesse estilo foi a influência do flamenco no vio­lão e no piano, dois instrumentos muito requisitados nessa região. Podemos citar os músicos: Blind Lemon Jefferson, Texas Alexander e o legendário Leadbelly;

c) O Memphis Blues — É o início de um blues centralizado em cidades. Tinha influência do Delta Blues, mas já apresentava a presença de instrumentos de orquestras, tais como violinos, bandolins e naipes de metal. Era uma música mais voltada à dança e ao passatempo. Seus maiores criadores foram: Memphis Jug Band, Sleepy John Estes e acima de todos W.C. Handy.


W.C. Handy — William Christopher Handy nasceu em Florence, no Alabama, no ano de 1873. Ainda jovem entrou na Escola Distrital de Florence, onde fez o curso de música. Handy estudou harmonia e teve contato com as obras de Verdi, Wagner e Bizet, porém o que atraía o jovem Handy eram as melodias de música popular que soavam à sua volta.

Gostava do canto plangente dos trabalhadores no campo; os cânticos ritmados acompanhando o trabalho escravo; os meninos negros tocando instrumentos de fabricação caseira — como o kazoo, instrumento de sopro que consiste em vários pentes de madeira enrolados em papel de seda que se assopra através deles —, que emitiam sons estranhos porém instigantes aos ouvidos de Handy.W.C.

Aos quinze anos ingressou num show mambembe de menestréis. Começou daí a sua vida de artista errante, perambulando por todo os Estados Unidos e colocando-se em contato com as formas populares de música, mais precisamente com o blues em sua forma mais primitiva. Em 1896 entrou no grupo Mahara’s Minstrels, que foi um dos principais representantes dos shows de menestréis da época, tornando-se em pouco tempo chefe de orquestra com quarenta e dois músicos.

Handy foi quem primeiro escreveu e publicou composições de blues. Compositor e arranjador competente,  pôs à disposição do meio musical o primeiro material “didático” editado a respeito do blues, contendo suas próprias composições e arranjos. Suas canções mais famosas, além de The St. Louis blues, são The Memphis blues, Hesitating blues, Beale Street blues e Loveless love. Handy presenciou o blues se tornar um estilo musical respeitado, executado em salas de concerto e em palcos de ópera, e viu sua obra ser considerada pelo público e pela crítica.


 

As Classic Singers

É apenas a partir da década de 1920, e curiosamente com as mulheres, que o blues ganha os primeiros registros em gravações. O desenvolvimento vertiginoso do mercado de gramofones e, consequentemente, o de discos levaram as companhias, situadas no Norte, a aumentarem a produção e a buscarem um novo filão consumidor.

Foram criadas, então, diante dessa necessidade, as race records, destinadas a atender aos negros emigrantes do Sul que se instalavam nos centros mais desenvolvidos do Norte como Chicago e Nova Iorque e que queriam participar da novidade fonográfica. O que essas gravadoras registraram era um blues muito diferente daquele tocado no Delta. O Classic Blues era um blues executado em cabarés, casas de dança, tabernas, cantado exclusivamente por mulheres. Elaine Feinstein, a autora do livro Bessie Smith: imperatriz do blues, assim define esse estilo:

A voz do blues urbano antigo é, na maior parte, feminina. Os homens cantavam as grandes canções de trabalho e levavam suas músicas rurais pelas estradas do interior do Sul. Ma Rainey, Bessie Smith e Ethel Waters, porém, tinham novas origens. Elas cantavam os sofrimentos das mulheres: a dependência em relação à sorte, aos homens e a luta para conviver com a traição e o abandono.

(p. 17.)

Em 1920, Mamie Smith gravou nos estúdios de Nova Iorque, pela Okeh Recording Company, o primeiro disco de blues, Crazy blues, obtendo um sucesso extraordinário: foram vendidos mais de 7.500 mil exemplares por semana. Mais do que depressa, outras companhias se aperceberam da importância desse mercado e investiram em outras artistas.

Essa gravação reacendeu o mercado fonográfico que estava sufocado pela novidade do rádio. Seria interessante lermos este trecho a respeito das race records:

Ao longo dos anos 1920 aquelas duas grandes companhias [a Victor Talking Machine Company e a Columbia Graphophone Company] tiveram de concorrer com um certo número de empresas independentes. A principal corrente de música popular desse período era constituída por “cantigas de teatro” escritas pelos compositores da Tin Pan Alley, a zona próxima dos teatros de vaudeville da Rua 27, e, mais tarde pelos de Brill Building, da zona residencial. Em 1920 Mamie Smith inaugurou a lista das pessoas de cor que gravaram discos. […]. Estava “descoberto” o mercado do público de cor. Os discos destinados ao público negro — na sua maioria, música de blues — foram rapidamente apelidados de “discos de raça” por Ralph Peer, o produtor de Mamie Smith. Se bem que o mercado “de raça” fosse pequeno, o fato é que, nos primeiros anos 1920, já comprava por ano 5 milhões de discos. Depois do estouro da Bolsa, em 1929, as empresas mais pequenas, na sua maioria, deixaram o negócio ou foram compradas pelas maiores.

(Apud Steve Chapple, Reebee Garofalo, in Rock & Indústria, p. 22.)

 

Desde o princípio as classic blues singers foram abraçadas pelas grandes orquestras de jazz, o que dava ao estilo uma característica mais sóbria e uma construção musical mais perto dos espetáculos de vaudeville — comédias musicais, espetáculos ambulantes do começo do século que percorriam os EUA durante o ano inteiro e que se apresentavam em pequenos vilarejos ou nas periferias das grandes cidades.

As principais representantes das classic blues singers são, num primeiro instante: Bessie Smith (1898-1937), conhecida como a “Imperatriz do blues”, foi, além de uma das maiores cantoras americanas, uma compositora de raro talento. São dela as canções “Empty bed blues”, “Backwater blues” e “Nobody knows you when you’re down and out; e Gertrude Ma Rainey (1886-1939), a “Mãe do blues” como ficou conhecida, foi uma cantora vigorosa, com um timbre possante, que registrou em sua obra quase que exclusivamente blues. Foi através dela que aconteceu o “casamento” perfeito entre as melhores orquestras de jazz da época com as classic blues singers.

Num outro momento, por volta de 1930, aparece outra fantástica cantora americana: Billie Holliday. Alguns livros especializados não a incluem como cantora de blues, preferindo mencioná-la dentro do hall das grandes cantoras do jazz. A verdade é que Billie Holliday viveu cercada dos grandes músicos da história do jazz, tais como, Ben Webster, Benny Carter, Paul Quinichette e Lester Young, não tendo na sua música e no seu canto características marcantes que possamos mencioná-la como uma cantora exclusiva de blues. É, sem dúvida, uma das maiores cantoras da música popular. Eis aqui algumas de suas interpretações: “A fine romance”, “Lady sings the blues”, “Sophisticated Lady”, “April in Paris” e “All or nothing at all” e “God bless a child”, esta última de sua autoria e seu maior sucesso.

Urban Blues

O urban blues se caracteriza pela eletrificação de sua música e de um novo caráter social.

Apesar dos Estados Unidos terem entrado na Segunda Guerra apenas em dezembro de 1941, desde 1938—1939 sua economia estava direcionada para a probabilidade do conflito. Houve, a partir daquele momento, um aumento da produção e uma consequente necessidade de mão de obra.

E é claro que os negros — há tempos esquecidos pelas leis políticas e pelas possibilidades socioeconômicas — responderam a essa necessidade, propiciando um verdadeiro êxodo de população. E o que se verificou, então, foi a vinda para o Norte de uma legião de negros provenientes de todas as regiões americanas atraídos pelo fortalecimento das indústrias.

Houve, no geral, uma melhora no nível de vida da população negra. Mesmo com os problemas sociais dos guetos, viu-se a formação de uma burguesia negra, que geraria um mercado consumidor promissor e um amadurecimento sociocultural que se concretizaria com as lutas dos direitos civis na década seguinte.

A cidade de Chicago ainda, em pleno século XXI, respira o Blues. Foto: Ricardo Esquivel / Pexels.

Em meados da década de 1930, o progresso tecnológico já proporcionava as primeiras eletrificações no blues. Os cantores, com os microfones a postos, não precisavam mais berrar para serem ouvidos nos bares e a guitarra elétrica, com seu volume entoando alto num rudimentar amplificador, era o centro das atenções.

Na metade dos anos 1940, o uso da guitarra elétrica se generalizou. A partir desse momento, verificou-se uma avalanche criativa do blues, o que tomou músicos e público de assalto, maravilhados com as inovações sonoras e com os efeitos que a eletrificação do blues lhes proporcionava.

A eletrificação da música tornou-se ideia fixa entre músicos e produtores. Uma lista grande de instrumentos, até então exclusivamente acústicos, foram eletrificados: órgão, vibrafone, piano, flauta, violino, saxofone, gaita, etc. Dentre essas tentativas, as que vingaram foram a do piano elétrico — de uma maneira mais tímida — e a da gaita elétrica, que se tornou a marca registrada do moderno blues urbano.

 

Sobre o surgimento da gaita elétrica, Gérard Herzhaft diz:

Em Chicago e em Memphis, a gaita se impôs de modo inesperado como um elemento dominante do blues orquestral. Esse frágil e queixoso instrumento tornou-se, pela graça da amplificação elétrica e nas mãos especialistas de Little Walter, Sonny Boy Williamson (Rice Miller), Big Walter Horton, um temível concorrente do bem mais oneroso saxofone. A sonoridade que esses grandes criadores inventaram nesse modesto instrumento foi, em todo caso, uma das contribuições mais originais e mais influentes do blues à música popular do pós-guerra.

(In Blues, p.66-7.)

Um dado interessante do urban blues é que, mesmo com toda eletrificação de sua música, a essência dos “primeiros blues” tocados no Delta estava intacta. No que diz respeito à sua estrutura musical, houve um meio termo entre o estilo Delta e o das Classic blues singers. Aconteceu uma valorização de bandas formadas, basicamente, por bateria, contra-baixo, guitarra, gaita e, às vezes, piano.

Essa inovação no blues proporcionada pela nova “sonorização” de sua música teve repercussões que se sentiria inclusive nos primeiros anos da década seguinte, chamando atenção das juventudes negra e branca, além dos produtores de discos.

Grandes nomes poderão ser citados:

No campo da gaita tivemos dois grandes mestres:

WILLIE DIXON (1915-1992)  Nasceu em Vicksburg, Mississippi. Um dos maiores representantes do blues de Chicago, compôs mais de 300 títulos. Por muitos anos forneceu inúmeras canções a Muddy Waters e Howlin’Wolf, que se tornariam verdadeiros “clássicos” do gênero. “You Shook Me”, “Little Red Rooster”, “Spoonful”, “My Babe” e “Wang Dang Doodle” são algumas composições de Dixon que se confundem com a própria história do blues. Produtor, arranjador e requisitado músico de estúdio, tocou seu baixo em discos de artistas primordiais do rock’n’roll, tais como Chuck Berry e Bo Diddley. Antes da música, sobreviveu do boxe. Em 1937 trocou o boxe pelo palco. Dixon cantou em grupos de gospel e passou temporadas em prisões rurais no sul. Em 1941, em plena Segunda Guerra, foi novamente preso por se recusar a servir o Exército. Willie Dixon teve um papel de suma importância na Chess Records — gravadora que, nos anos 50, desenvolveu um trabalho paltado no rhythm’n’blues e no rock’n’roll — exercendo funções de compositor, arranjador, músico e de descobridor de talentos. Morreu vítima diabetes em Burbank, Califórnia, aos 76 anos.

Dois nomes em particular se tornariam grande influência para a música que surgiria no início da década de 1950:

Dois mestres importantes do blues urbano que produziram um enorme acervo que é visitado e estudado até hoje são:

O legado dessa mudança no blues chegaria na década seguinte em forma de uma potente dinamite, que abalaria a estrutura vigente e que se chamaria rock’n’roll. Assim diz o historiador Joachim E. Berendt a respeito da importância do blues para a música que se criaria a partir dos anos de 50:

Através de Bill Haley, Elvis Presley, Chuck Berry, Fats Domino, Little Richard e muitos outros, o elemento blues penetrou na música popular, destruindo assim o sentimentalismo, o kitsch e a superficialidade que lhe era comum […]. Se a música pop de hoje possui um nível musical e literário mais elevado, assim como maior coerência e autenticidade de expressão do que a música popular anterior a 50, isso se deve à infiltração dso blues e da música negra em sua linguagem. A música negra é em geral mais realista, mais ligada aos problemas sociais e ao dia-a-dia da vida de cada um.

(In O Jazz: do rag ao rock, p.129.)

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