Paulo Sá

Perseguição

Por Henrique Félix

Abri o livro no momento em que Julio saía para a rua. A cidade, mergulhada num feroz estado de sítio, acabara de ouvir o toque de recolher. Desafiando as patrulhas e os holofotes, Julio buscou as calçadas mais silenciosas, onde o ritmo de seus passos pudesse ressoar como um grito. Muita coragem, sobretudo para ele, um gigante tão afável que, não obstante a altura, ainda trazia consigo a mágica e insólita mania de crescer sem parar.

A noite era gelada; dentro dos bolsos do casaco, Julio remexia pedaços de giz colorido, com os quais desenharia o próximo grafite. O cigarro, no canto da boca, era o mesmo da foto estampada na contracapa do livro e, muito embora apagado, impunha uma atitude de falsa negligência que apenas disfarçava sua crescente agitação. Num quarteirão sombrio, diante de um muro branco, Julio fez sofregamente o desenho da noite. Depois, encostou-se no tronco de uma árvore e esperou com ansiedade por sua secreta correspondente. Porém, antes que ela chegasse para completar seus rabiscos, uma viatura despontou no começo da rua, obrigando-o a correr para longe.

Os policiais vieram no seu encalço. Julio era ágil e tinha a orientação dos gatos: como fizera durante outras fugas, pulou cercas, atravessou jardins, embarafustou-se por vielas e, ao dobrar uma esquina, ainda teve tempo de desenhar no chão um campo para  o  jogo da amarelinha. Em seguida, meteu-se pelos fundos da primeira casa que encontrou.

Com alguma sorte, na manhã seguinte, uma criança talvez viesse até ali, olharia o desenho com marota surpresa, poderia inclusive brincar com suas fantasias, dentro dos limites daquele espaço proibido.

O terror cercou o bairro. Na casa invadida por Julio, moravam dois irmãos, um homem e uma mulher, ambos solteirões. Alarmados com o burburinho lá fora e com o súbito barulho que os sapatos de Julio faziam na cozinha, os dois decidiram trancar para sempre a porta do corredor principal. Depois disso, juntaram o que foi possível e fugiram dali, resignados com o fato de não poderem viver numa casa tomada. Julio ficou isolado nas dependências dos fundos, mas se sentiu tentado a descobrir uma passagem secreta que o pusesse a salvo da polícia. Descobriu, na despensa, a entrada de uma galeria esquecida, que o levou a um velho e desativado formigueiro.

Maravilhou-se: não resistiu ao desejo de pichar todos os túneis. Perdido no labirinto durante horas, Julio sentiu, de repente, que um exército voraz marchava então atrás dele. Caminhou rápido, com a aflição nos calcanhares. Veio dar, por acaso, atrás de uma estante de biblioteca. Para minha surpresa – e dele também –, eu estava lá. Julio mirou-me com firme esperança e disse:

– Estão me perseguindo, amigo. Você foi o escolhido para me ajudar.

Sem desviar a atenção das páginas que lia, encarei Julio bem dentro dos olhos e respondi, com decisão:

– Tudo bem. Deixa comigo.

Não era hora de arriscar. Qualquer deslize, naquelas circunstâncias, eliminaria Julio antes do final do jogo. Saí por um tempo, arrumei alguns disfarces e, ao entardecer, levei-o cautelosamente até o Cervantes, hotel pouco conhecido. Lá, registrado sob um falso sobrenome – Cortázar – Julio ocupou um quarto no segundo pavimento. Espaçoso porém discreto, o quarto era geminado a outro, que estava vazio, e cuja porta de comunicação era bloqueada por um guarda-roupa.

Ainda que intrigado com a disposição do móvel, Julio concordou em passar a noite ali. Comprometi-me a retornar pela manhã, com qualquer solução capaz de nos conduzir para fora do país. Naquela noite, Julio dormiu mal. Sonhou que sua parceira de grafites era capturada pelos militares e teve a nítida impressão de ouvir um choro de criança através da porta condenada pelo armário. Um choro proveniente do quarto ao lado – que estava vazio.

Encontrei-o de novo às dez horas da manhã, abatido por um pesadelo hipodérmico:

– Eles estão perto demais.

– Não por muito tempo – repliquei, triunfante, mostrando-lhe dois bilhetes premiados por uma loteria turística. – Vamos fazer um cruzeiro. Não sei o nome do navio, não sei para onde vai, nem mesmo quando partirá. Mas iremos.

Felizmente, o transatlântico partiu naquela noite. Subimos a bordo com passaportes falsos, identidades trocadas. Eu, brasileiro; ele, argentino. Deixamos para trás os muros borrados, as casas invadidas, as galerias sob bibliotecas, as portas que guardavam soluços infantis. Durante toda a viagem, Julio olhou o mar de uma maneira irreversível. Sem hesitação, chegou até a liderar um motim de passageiros contra a tripulação misteriosa e ausente, que nunca se revelava para nós. Tomamos o comando do navio e, ao desembarcarmos em Marselha, Julio sugeriu que fôssemos a Paris, em carros separados, para despistar.

Aluguei um Dauphine para mim e um Peugeot 404 para ele. A caminho de Paris,pela autoestrada do sul, ficamos presos num congestionamento de tráfego que durou alguns meses. Amarga ironia. Cercados de automóveis por todos os lados, fundidos num bloco monolítico que avançava uns poucos centímetros por hora, percebemos definitivamente que fugir não era tão simples assim. No entanto, quando o nó da estrada se desatou, e todos os motoristas estavam preocupados em olhar exclusivamente para frente, Julio aproveitou o caos dos carros para escapar de mim também.
Cheguei a Paris absolutamente desnorteado. Abandonei o Dauphine sob o Arco do Triunfo e perambulei a esmo pela cidade. Ruas, cafés, metrô, bulevares; procurei Julio nos grafites das paredes, nas reentrâncias das casas, nas curvas dos vagões de trem, nas belas portas escondidas. Nada. Como último recurso, vasculhei as bibliotecas, aprendi francês, esquadrinhei todos os livros de mistério e ficção, até compreender, inconformado, que a nossa paz tinha a saúde dos doentes e que só a conseguiríamos, de fato, ignorando o destino um do outro. Naqueles tempos difíceis, pelo menos, teria de ser assim.

Experimentei uma felicidade ambígua, por sentir que Julio estava salvo e também por constatar que ambos ficáramos na mais insuportável solidão. Entretanto, lá no fundo, jamais deixei de procurá-lo. Desde então, reconstruí minha vida naquela cidade luminosa e subterrânea. Apesar de livre, às vezes sentia olhos penetrantes à minha espreita. A dúvida me angustiava nesses momentos. Não sabia se quem me espionava era Julio ou nosso eterno perseguidor. (Até quando?)

Comecei a me corresponder com as pessoas; primeiro por olhares, em seguida por palavras, depois por mensagens escritas. Apaixonei-me, em busca de sinais. Certa noite, escrevendo uma carta a uma senhorita em Paris, tive dúvida em determinada palavra, consultei o dicionário. Bruscamente, sobreveio-me um desejo louco de abrir todos os volumes de minha parca e precária biblioteca, abri-los de par em par, como se fossem janelas, deixando-os à mercê da invasão de ar e luz. Lancei os livros para cima, como confetes. Um álbum de fotos de Paris caiu no chão, expondo a imagem de um pilar cinzento onde se lia, em vermelho: “Tarde demais. Tudo em vão. Morri de amor

Parei, estupefato. Até que enfim, Julio me acenava de seu esconderijo. Não tive tempo de atinar com as frases: quase que instantaneamente, um toque pesado pousou em meus ombros. Virei-me e enxerguei a aparição fantasmagórica de Julio, que me encarava de cima, com a típica expressão de olhar daqueles que já viram tudo. O casaco era o mesmo, o cigarro e a gravata também, os sapatos tinham um brilho imaterial, Julio crescera ainda mais.

Foi duro, muito duro, atravessar aquela passagem. Tristeza semelhante só mesmo na morte do Capitão Lennon e de seu fiel escudeiro, o Sargento Pimenta. Engoli em seco um nó na garganta, avancei contra o espectro, cobrindo-o de socos e beijos e pontapés e tapas, para afinal mergulhar na maciez volátil e impalpável de um longo abraço fantasma.

– Então, tem que ser assim mesmo? – perguntei-lhe, depois de tudo, já sabendo a resposta.

Julio apenas confirmou minhas lágrimas com a cabeça.

As coisas acontecem por acaso, muitas vezes sem qualquer explicação; subitamente, estanquei minha angústia, envolvi-me num alívio comparável à tranquilidade, que, em última instância, é chamada de paz.

– Então está bem – consenti. – Vamos.

Na noite imensa de Paris, já sem a preocupação que nos perseguia, saímos andando sem destino, Julio e eu, dois velhos amigos abraçados, conversando com animação, inventando histórias, colorindo os muros para sempre.


Julio Cortazar
Crédito da foto: Sara Facio, Paris, 1967. Essa foto tornou-se um ícone da literatura hispano-americana e do realismo fantástico latino-americano. 

Nota do Autor: Homenagem de um leitor à obra do escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984).
Referências presentes no conto: romances O jogo da amarelinha e Os prêmios; contos “Casa tomada” e “Carta a uma senhorita em Paris”, do livro Bestiário; contos “Os venenos”, “Continuidade dos parques” e  “A porta incomunicável”, do livro Final do jogo; contos “A autoestrada do sul” e “A saúde dos doentes”, do livro Todos os fogos o fogo; conto “Grafitti”, do livro Orientação dos gatos; conto “O perseguidor”, do livro As armas secretas.

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