Por Luiz Domingues
Considerado como um dos mais criativos diretores do cinema inglês de todos os tempos, Ken Russell sempre foi um apaixonado por música, sob uma primeira instância. E apesar de ter construído a sua fama no cinema, ele demorou, na verdade, para mergulhar, de fato, nessa atividade.
Nascido em 1927, em Southampton, Inglaterra, Ken Russell tornou-se militar na juventude, ao ter servido na Marinha e também na Aeronáutica de Sua Majestade.
Ao final dos anos 1950, após abandonar a carreira militar e casar-se, Ken começou finalmente a envolver-se diretamente com a arte. Iniciou através de pequenas produções com a música e balé, para passar para a fotografia, logo a seguir.
Ken Russel e seus primeiros passos
Contratado pela BBC em 1959, ele iniciou sua carreira como documentarista. Realizou significativos trabalhos para a TV, ao enfocar nas biografias de artistas plásticos, divas do teatro e compositores da música erudita.
Era profundamente interessado pela música Folk britânica (e europeia em geral). Embrenhou-se pelo meio musical, quando conheceu a cena da explosiva “Swingin’ London”, da segunda metade dos anos 1960. Isso foi fundamental em termos de influência para que a sua carreira, como cineasta, deslanchasse, a partir do final daquela década.
O seu primeiro filme com forte conteúdo musical foi “The Music Lovers”, lançado em 1970. É uma extraordinária cinebiografia do compositor erudito, russo, Piotr Llitch Tchaikovsky, denominada “Delírio de Amor”.
Nessa película, Ken Russell já teve a oportunidade para expressar com veemência a sua verve delirante (e Rocker por uma livre associação de ideias), pela visão alucinógena & psicodélica, mediante uma enorme profusão de imagens oníricas, as quais ele retratou os tormentos internos do compositor cinebiografado, mas, sobretudo, a realçar a sua genialidade musical implícita.
Os delírios do compositor russo, transformaram-se em um puro exercício lisérgico, ao som de sua esplêndida música. Como por exemplo, “Os canhões de 1812”. Neste caso soltaram mais do que balas a defender a mãe russa da invasão do exército comandado por Napoleão Bonaparte. Na verdade, representaram a explosão de uma loucura explícita da parte do artista.
O ator norte-americano, Richard Chamberlain, interpretou o compositor russo.
A crítica achou tudo exagerado. O público cativo aguardado por Russell, certamente com tendência conservadora, a cultuar a música erudita, não gostou das cenas alucinógenas. Entretanto, o fato é que Ken Russell passou a ser notado em maior escala entre os cinéfilos, depois desse lançamento.
A carreira de Ken Russel deslancha
Uma nova incursão musical dar-se-ia em: “The Boy Friend” (“O Namoradinho”), lançado em 1971. Protagonizado pela cultuada modelo sessentista, Twiggy, e pela famosa atriz, Glenda Jackson. Tal película tratou-se de um musical ao estilo vintista. Mas evidentemente que os elementos mais ousados e anacrônicos foram ali usados. Fugiu-se do padrão usual de um musical comum, pois Russell sempre forjou o seu estilo para não se limitar a quaisquer clichês cinematográficos.
Depois disso, em 1974, Ken Russell aventurou-se novamente pela cinebiografia romanceada de um compositor da música erudita. E, assim, foi fundo na sua composição histriônica a retratar a sua visão sobre a vida e obra do austro-húngaro, Gustav Mahler.
Ao usar como mote primordial da história o dilema antissemita que atormentou o compositor durante a sua vida inteira, o diretor foi fundo nessa impressão ao focar na questão da conversão do compositor, do judaísmo ao catolicismo.
Ken Russell exagerou mesmo nas metáforas e alegorias ao retratar o nazismo mais perverso, com cenas fortes a explicitar o sadismo inerente da parte de seus agentes mais cruéis e, por conseguinte, a externar o profundo desprezo da parte das pessoas comprometidas com tal ideologia a respeito da cultura judaica.
Fãs da música hermética (e bela) de Mahler desapontaram-se profundamente. Em sua maioria, repudiaram a obra cinematográfica, ao alegarem que o foco foi totalmente errado da parte do diretor. Houve casos de protestos veementes da parte de fãs do compositor, indignados com o resultado da obra.
Uma curiosidade interessante: muitos dos atores com os quais Ken Russell trabalhou nesta película sobre a vida e obra de Mahler, foram escalados para a sua próxima produção, o filme: “Tommy“, baseado na “Ópera-Rock” do grupo britânico, The Who.
Ken Russel e o rock
E a consagração em maior escala para o trabalho de Russell, veio mesmo com o lançamento de: “Tommy”, lançado em 1975. Foi o delírio máximo que ele poderia conceber para retratar a saga do menino cego, surdo & mudo, personagem emblemático da monumental Ópera-Rock, do The Who.
Com carta branca de Pete Townsend, guitarrista e principal compositor da obra do The Who e certamente o mentor do projeto dessa obra em específico, Ken Russell deu asas à imaginação e fez um dos filmes mais loucos da história do Rock, e talvez até dos anais do cinema em geral, ao usar e abusar do recurso das alegorias, lisergia, nonsense e, sobretudo, pela enorme profusão de elementos oníricos.
Recheado com atores importantes do cinema inglês e norte-americano, além de diversas estrelas convidadas do mundo do Rock a atuarem como atores improváveis, o filme foi um sucesso absoluto de bilheteria e convenhamos, a obra musical do The Who, dispensa comentários, aliás, nem só pela música em si, mas pelo libreto de “Tommy”, que contém uma profundidade surpreendente.
Ken Russel e a música clássica
Empolgado com o sucesso estrondoso de “Tommy”, Russell partiu a seguir para mais um projeto ambicioso: retratar a biografia do pianista e compositor erudito, Franz Liszt.
Assim como já houvera ousado ao retratar, Tchaikowsky e Mahler, poucos anos antes, desta feita ele carregou ainda mais na loucura e lançou: “Lisztomania” em 1976, ao ambientar a vida de Franz Liszt à sua época original, o século XIX, no entanto, a concebê-lo como se ele fosse um astro do Rock, da década de 1970.
Por fazê-lo tocar ao vivo em teatros lotados, sob a ação de fãs histéricas e mediante a forte presença de “groupies”, mas em pleno século XIX, mais uma vez ele fez uso da loucura Rocker, explícita, além do recurso do anacronismo forjado.
Roger Daltrey, o vocalista do The Who, que interpretara o personagem do filme homônimo, “Tommy”, atuou como ator mais uma vez, desta feita a viver o famoso compositor e pianista, húngaro.
Ao emendar uma loucura na outra, Ken Russell colocou neste filme, o personagem do compositor, Richard Wagner (interpretado por Paul Nicholas), como um nazista tresloucado, a se confundir com o próprio, Adolfo Hitler. O super tecladista Progger-Rocker, Rick Wakeman (que gravou os temas de Liszt ao piano, na trilha sonora do filme), como o Deus Thor, da mitologia nórdica, criado como uma espécie de mostro de Frankenstein a reforçar a alegoria gótica clássica do terror. E Ringo Starr, o lendário baterista dos Beatles, a interpretar um profano Papa Pop (na sua estola Papal usada em cena, são nítidas as ilustrações sensuais da falecida atriz e sex-symbol, Marylin Monroe).
A vez da ficção científica
Após “Lisztomania”, Ken Russell deixou de lado um pouco o cinema com sabor Rock e o seu próximo trabalho foi a ficção científica: “Altered States” (“Viagens Alucinantes”).
O filme não tem nada musical, nem é Rocker explicitamente a se falar, mas é fortemente influenciado pela contracultura, pois para quem tomou contato nas décadas de 1960 & 1970, com a literatura antropológica/shamânica de Carlos Castañeda, há de gostar desse filme, pela sua abordagem clara neste filme.
E além disso, “Altered States” tornou-se também um ícone entre os cinéfilos apreciadores do gênero, Sci-Fi.
As cenas perpetradas pelo personagem do ator, William Hurt, a vivenciar delírios alucinógenos provocados pela ação do peyote e/ou mescalina, imerso em uma caverna remota de um deserto mexicano e acompanhado por “shamans” locais, é um dos maiores delírios lisérgicos da carreira de Ken Russell.
O seu último trabalho foi em 2002, chamado: “The Fall of the Louse Usher”. O cineasta faleceu em 27 de novembro de 2011.
Esta matéria não trata de toda a filmografia da carreira de Ken Russell. Apenas fala de alguns de seus filmes mais centrados no universo musical e que apresentam uma amálgama comum, expressa na loucura e nos tormentos internos de alguns personagens. Esses dois aspectos muito interessavam-lhe, particularmente, como forma de explicar a genialidade de compositores que ele admirava, tanto na música erudita, pela qual ele foi apaixonado, quanto pelas raízes folclóricas da música Folk britânica e também no Rock, que ele abraço a posteriori.
Luiz Domingues é músico e escritor.