Vimos no capítulo 2 que o blues é o resultado de duas estruturas musicais: a africana, pautada no sistema pentatônico, que é derivado da escala maior, retirando-se o IV e o VII graus, e a europeia, baseada no sistema diatônico. Já o sistema musical diatônico apresenta tons e semitons, e a distância entre esses tons, ou seja, o intervalo que existe entre um som e outro é denominado grau.
Assim, tomemos como exemplo os sons a partir de dó: dó (C, grau I), ré (D, grau II), mi (E, grau III), fá (F, grau IV), sol (G, grau V), lá (A, grau VI) e si (B, grau VII).
Os semitons aparecem entre o III e o IV graus e entre o VII e o VIII graus. No braço do violão é mais fácil visualizar os semitons:

Reparem na imagem do braço do violão acima. Ele é divido por trastes e cada um representa meio tom. Ou seja, caminha-se pelo braço do instrumento de meio em meio tom.
No caso da imagem acima, apenas as notas mi (III grau), fá (IV grau) si (VII grau ) e dó (VIII) apresentam a distância (intervalo) de meio tom, o que significa que estão ordenadas dentro da tonalidade de dó maior.
Pois bem, os negros, ao entrarem em contato com o sistema diatônico, depararam com uma dificuldade: os semitons terceiro e sétimo graus, que na música europeia determinam a tonalidade em maior ou menor, não existiam no sistema pentatônico e a eles soavam estranhos, já que não sabiam se os executavam naturais (sem acidentes) ou bemolizados.
E foi justamente essa dúvida de interpretação que originou as blue notes.
Blue notes: a alma do blues
Antes de entrarmos no segredo do blues é necessário uma pequena explicação sobre alguns conceitos de música. Um deles: o que são acidentes? Acidente na música ou sinal de alteração é um símbolo que indica alteração de semitom ou de tom na altura da nota. São no total oito acidentes; porém, os mais usados são o sustenido (#), que eleva a altura da nota em um semitom, e o bemol (b), que abaixa a altura da nota em um semitom.
Agora falaremos a respeito da dúvida que os negros tiveram ao interpretar a música ocidental que ouviam.
É comum perguntarmos: “Esta música está no tom de dó maior?”. Mas o que vem a ser um modo ou tom maior ou menor?
O modo é a maneira pela qual os tons e os semitons se distribuem entre os graus da escala; e graus são as notas da escala, numeradas a partir da nota inicial. Nos modos maiores, os semitons se encontram entre os graus III-IV e VII-VIII; e, nos menores, entre os graus II-III e V-VI.
Os modos maiores e menores existem independentemente; entretanto, para facilitar o entendimento, é costume considerar o modo menor como derivado do maior.
Os graus que determinam se uma música é maior ou menor são os III e o VII. Assim, se quisermos tocar qualquer canção no tom de dó menor, por exemplo, teremos de diminuir meio-tom em seu terceiro grau (III), ou seja, a nota mi. Tocaremos, então, o mi bemol: acorde de dó menor — dó (I)/mi bemol (III com meio-tom abaixo)/sol (V) → acorde de dó maior — dó (I)/mi (III)/sol (V).
A dúvida dos músicos negros foi resolvida ao colocar essa nota bemolizada onde, teoricamente, tal acorde não aceitaria. As blues notes são justamente a terça bemol de uma escala pentatônica maior (acorde maior) e a quinta bemol na pentatônica menor (acorde menor).
Sua contribuição à música popular e erudita
A blue note, certamente, foi a última grande novidade no quesito estrutural da música ocidental.
Além dos gêneros musicais decorrentes dela (→blues → jazz → rhythm and blues → rock’n’roll → rock), influenciou também a música pop após os anos 1950 e a música erudita.
Um pouco sobre esse assunto, podemos citar José Miguel Wisnik:
A música americana inaugura assim uma forma ativa de música popular urbana que interage com a música de concerto contemporânea à qual ecoa e influencia (sinais dessa influência estão por exemplo em Ravel, Stravinski, Milhaud. Por ali passam, num curto e vertiginoso período, misturados, a escala pentatônica, os modos diatônicas, o sistema tonal, e o atonalismo, lidos através dos fluxos pulsantes e até mesmo da saturação estilística que caracteriza o jazz.
Ouçam a blue note presente nessas duas obras:
≡ Another night to cry, Lonnie Jonhson, em uma apresentação na tv em 1963.
≡ Rapsody in Blue, George Gershin, obra composta em 1924, interpretada por Leonard Bernstein/New York Philharmonic.
O texto na imagem destacada está em: O livro do jazz, de Joachin Berendt, Perspectiva, 2014.
A seguinte obra foi consultada: O som e o sentido, de José Miguel Wisnik, Companhia das Letras, 1990.